PRÁTICAS E ESTRATÉGIAS DE GUERRA GAVIÃO KYÌKATÊJÊ NAS NEGOCIAÇÕES PELA VIDA

MANTILLA, Elizabeth, Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas Territoriais e Sociedades na Amazônia da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, Bolsista CAPES, elizabethmantilla@unifesspa.edu.br
POSSAS, Hiran, Professor Adjunto da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, hiranpossas@unifesspa.edu.br

Introdução
A presente pesquisa parte da experiência de algumas lideranças do povo Gavião Kyìkatêjê em pensar o futuro da sua comunidade dentro dos conflitos do território amazônico brasileiro, através das práticas discursivas geradas no processo de construção de um Plano de Vida. Este Plano foi o mecanismo político e econômico que a comunidade escolheu para contestar a ideia do desenvolvimento do Estado brasileiro e lutar por sua autonomia e independência. Dentro desse processo, foi inserida, também, a comunidade universitária mediante à realização de um diagnóstico, sob o marco de um acordo técnico científico, gerando uma relação de parceria com um grupo interdisciplinar de professores da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA), tendo a pesquisadora também como integrante.

Os Gavião, historicamente pela literatura antropológica, são reconhecidos por três turmas guerreiras: Parkatêjê, Akrãtikatêjê e Kyìkatêjê. Atualmente, essas três turmas moram na Terra Indígena Mãe Maria (TIMM) no município de Bom Jesus, Pará, distribuídos em 16 aldeias, e ainda mantem constantes tensões com as empresas e o governo brasileiro pelo usufruto do território. A pesquisa trabalhou com a aldeia Kyìkatêjê do quilômetro 25, devido a uma provocação da própria comunidade para a realização de um acordo de cooperação técnica entre a UNIFESSPA e a associação Amtati Kyìkatêjê, depois de ter passado por um período de incerteza econômica em 2015, pois o recurso monetário acordado nas negociações judiciais com a VALE S.A. foi suspenso, deixando os projetos comunitários estagnados (SOMPRÉ e FERRAZ, 2016). Com base nessa experiência, o líder Zeca Gavião, junto com os outros líderes comunitários, percebeu a necessidade de garantir a seus filhos, mulheres, pais e avós, uma autonomia e segurança que não dependesse dos recursos da remuneração da empresa.

Esta comunicação traz parte do segundo capítulo da pesquisa, objetivando realizar uma leitura das formas de negociação da comunidade Gavião Kyìkatêjê com dois atores: a VALE S.A. e a equipe de professores da UNIFESSPA, como uma prática bélica de resistência metamorfoseada no processo de acompanhamento da construção do Plano de Vida. Nesse sentido, este trabalho apresenta três atores para as análises desse cenário: a comunidade, a empresa VALE S.A. e a equipe interdisciplinar, na qual está inserida a participação da pesquisadora. 

Metodologicamente, nas diversas reuniões sobre a demanda pelo Plano de Vida entre os três atores, ocorridas em tempos distintos, mas em espaços comuns, recursos de pesquisa qualitativa foram utilizados, como o caderno de campo, a observação participante e entrevistas com as lideranças orientados pelas problematizações de “escuta” da História Oral.
1. Fundamentação teórica

O conceito de “guerra”, em comunidades não ocidentais, foi trabalhado pelo o antropólogo Lévi-Strauss no seu texto “Guerra e comércio entre os índios do América do Sul”, e as conclusões foram posteriormente retomadas na sua obra sociológica sobre as estruturas do parentesco. Como frisa Pierre Clastres (2009, p. 33), as considerações do Lévi-Strauss mostram a guerra dentro de um discurso econômico, fundamentado na noção do intercâmbio como ponto fundamental do ser social, porém essa relação entre guerra e comércio impede pensar o fenômeno da guerra que a realidade etnográfica retrata nas sociedades sem Estado, pois afirma que a pergunta que as comunidades se fazem não é com quem pode se fazer um intercâmbio; senão, como podem manter a sua independência e autonomia. 

Para Clastres (2009, pp. 77-79), as sociedades primitivas são sociedades contra o Estado porque estão à margem dele. São sociedades que levam a norma no seus corpos e não num papel. Segundo este autor, o Estado é o maior adversário da guerra porque foi instituído para ter o monopólio da violência e decidir sobre a vida, e dentro da visão moderna, guerra e vida estão contrapostas. Não Obstante, Clastres resgata que as sociedades primitivas são sociedades guerreiras e que essa guerra é sempre contra o Estado e todos seus sobrenomes: neoliberal, capitalista, social. Uma guerra que nunca acaba. 

Nesse sentido, as análises de Clastres são o ponto de partida para a interpretação da guerra dentro da comunidade Kyìkatêjê, pois, embora exista uma transição do conceito de sociedades primitivas a comunidades indígenas, este autor aceita que a guerra está no cerne dos chamados “primitivos” pelos cronistas. 

Florestan Fernandes (1952), no seu livro A função social da guerra na sociedade Tupinambá, aporta também um marco analógico para interpretar e questionar as atividades cotidianas da comunidade Tupinambá como técnicas de guerra que podem ser refletidas, em certa medida, na realidade Kyìkatêjê. 

A partir de sua descrição da experiência Tupinambá, é possível fazer um mapa mental de um cenário de luta e fazer as perguntas diretas e concretas que precisam ser respondidas para o contexto Gavião: qual tipo de arma tem a comunidade para entrar na dinâmica da guerra? Quando se reconhece que é uma prática de guerra? Em que medida, é possível dizer que a guerra faz parte da técnica social da comunidade? Assim, embora o seu trabalho demostre como é o funcionamento da guerra numa determinada sociedade, é indispensável reconhecer aquelas ferramentas e ritos ocultos descritos no seu texto, que podem ajudar a decifrar a prática e estratégia de guerra do povo Kyìkatêjê, a qual tem-se transformado simbólica e materialmente, mudando as relações de sentidos da comunidade com determinados objetos, espaços e sujeitos. 
2. Resultados alcançados

A pesquisa com a comunidade iniciou no ano 2019 e ainda faz um acompanhamento dos processos de construção do Plano de Vida, porém os resultados que se apresentam aqui, desprendem-se do trabalho de campo feito até setembro do 2020. Cabe dizer, que durante o período de quarentena seguido pelo povo, o acompanhamento da pesquisa foi feito por meios virtuais, assistindo as Lives em internet, nas quais participaram algumas lideranças. 

Apresentam-se, então, três etapas marcadas pelos tempos e as circunstâncias nas quais foi desenvolvido o trabalho. A primeira etapa é dos “Encontros” na qual as trocas entre a comunidade Kyìkatêjê e os profissionais de diferentes áreas (economia, literatura, agrologia, antropologia, biologia, saúde, geologia) da UNIFESSPA mostraram as limitações do território da comunidade referente aos espaços para o crescimento demográfico do povo, os cultivos de produtos agroecológicos, as limitações da equipe da saúde, mas também desenharam possíveis caminhos para pensar no futuro deles como povo, e as futuras interações da sociedade brasileira com a comunidade através de projetos educativos da escola e de projetos culturais. 

Dessa forma, a comunidade aproximou-se das pessoas da universidade para integrar, o que em palavras do Cacique foi “A equipe dos Kyìkatêjê”, percebendo-se o ingresso da comunidade universitária no território gavião como um aliado em questão, ou seja, um aliado que, constantemente, deve reafirmar seu posicionamento no olhar do povo. Esta aliança entre o povo e a universidade gerou um sentimento de respaldo da comunidade na luta pela autonomia no seu território, luta mantida há mais de 30 anos com a empresa VALE S.A, e que pela primeira vez, acontecia acompanhada da figura de um possível aliado.

Nesta etapa, a introdução de um novo participante no jogo de tensões fez mudar a estratégias da empresa para se aproximar da comunidade, ao mesmo tempo que a comunidade mudou sua forma de se relacionar com a empresa para fazer efetivas suas demandas. A procura de um aliado surgiu também com a reafirmação da VALE S.A. como adversário e inimigo ao suspender a remuneração que dava para o povo em contraprestação do impacto gerado pela passagem do minério. 

Instituiu-se também um processo de autoconhecimento por parte da comunidade e da equipe da UNIFESSPA, pois se integraram cinco mesas de trabalho para trocar olhares, pensamentos e imagens: 1) educação e cultura, 2) saúde, 3) administração e governança, 4) gestão territorial e 5) atividades produtivas. Em cada mesa de trabalho participava uma equipe dos Kyìkatêjê e outra equipe da universidade. 

A segunda etapa da pesquisa foi marcada pelo Covid-19, e a dinâmica da Pandemia, que questionou a autonomia da comunidade e evidenciou a estratégica do Estado para “garantir” os direitos dos povos indígenas. A comunidade se isolou para qualquer não indígena desde finais do abril e princípios de maio, até o 28 de setembro que foi o encerramento do luto, dando espaço só para ter o contato estritamente necessário com o exterior. Não obstante, dentro desse período de isolamento aconteceram isolamentos internos que romperam com a estrutura comunitária e ocasionaram novas práticas sociais e formas para restabelecer um outro ethos comunal, fazendo com que a comunidade voltasse para o mato com a necessidade de caçar, pescar e conviver do jeito que os sábios da comunidade contam na suas histórias. 

Durante essa etapa, a figura do aliado se fez presente na comunidade, através de ajudas materiais para superar o início da Pandemia, enquanto a aldeia criava uma tática para enfrentar a emergência sanitária. Neste ponto, marcaram-se mais as figuras de aliados e adversários no olhar dos Kyíkatêjê, pois as negociações com a VALE S.A foram suspensas; igualmente com os representantes da empresa, enquanto a comunicação com os “aliados” foi mantida por vias virtuais. Foi uma etapa de reflexão para a comunidade e para a equipe da UNIFESSPA, na qual compreendeu-se de uma melhor forma a qualidade do adversário na luta. A comunidade aprofundou sua construção da autonomia e isso fez levantar de novo o espírito guerreiro do gavião para afinar as estratégias de diálogos, pois identificaram-se demandas que o povo não tinha previsto como a nova significação do espaço do setor da “Limpeza”, setor pensado anteriormente para os projetos agroecológicos, mas que agora converteu-se num acampamento comunitário que fez pensar na possibilidade, segundo o Cacique, de um compartilhar entre o povo, as outras aldeias e o brancos. 

A última etapa, é a etapa da abertura, na qual a comunidade começou a refletir a entrada do Outro no território deles para continuar com os projetos da aldeia que envolvem outras aldeias da TIMM. Do mesmo modo, o povo pensa a entrada no território da VALE S.A. Porém, os lutos que tem envolvido à TIMM por causa da Pandemia interrompem constantemente a abertura da comunidade. Pois parece que no momento em que eles se acham seguros para dialogar com o exterior, aparece de novo a incerteza e a morte pegando no pé. Nessa etapa, questiona-se a construção do Plano de Vida e do pensamento a futuro no seu sentido coletivo, pois planteia vários interrogantes: como pensar o futuro com o Outro? Como aprender a conviver com o Outro, quando o isolamento torna-se prática cotidiana da morte e da vida (no luto e como medida sanitária)?
Conclusões

A pesquisa desenvolve-se dentro de um contexto dialético, no qual as posições assumidas pelos atores traspassam suas habituais identificações. A guerra que marcou o povo Kyìkatêjê no passado (contra outros grupos e contra o Estado) pouco tem mudado de cenário, mas sim de ferramentas e técnicas. Pensar o futuro do povo, pensar a existência da comunidade, não podia se afastar de pensar a guerra como um lado da ponta de uma mesma flecha que a comunidade joga contra o desenvolvimento capitalista no seu próprio território. E a construção de seu Plano de Vida está sempre numa negociação, numa prática bélica com as outras partes, pois para continuar vivendo é preciso lutar dentro do olhar do povo. Vida e guerra são equivalentes no cotidiano do guerreiro Kyìkatêjê. 

Referências bibliográficas
CLASTRES, Pierre. Arqueología de la violencia: la guerra en las sociedades primitivas. Tradutor Luciano Padilla Lopez. 2a ed. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2009

CLASTRES, Pierre. Arqueologia da violência: pesquisas de antropologia política. Tradutor Paulo Neves. Edição brasileira. Brasília: Cosac & Naify, 2004. 

FERRAZ, Iara. Os Parkatêjê das matas do Tocantins: a epopéia de um líder Timbira. Săo Paulo: USP, 1983.

FLORESTAN, Fernandes. A função social da guerra na sociedade tupinambá. São Paulo: Revista do Museu Paulista, 1952.

SOMPRÉ, Concita; FERRAZ, Iara. Entre acordos e desacordos: trinta anos de relações dos “Gavião” com a Eletronorte e a Vale. Inédito, S.i, v. , n. , p.1-18, jun. 2016.

Comentários

  1. Elizabeth, sua pesquisa é bastante interessante, parabéns.
    Gostaria de saber qual o papel desenvolvido pela empresa Vale nesses processos de Guerra/negociações e de realização da pesquisa? E qual a relação existente entre a equipe multidisciplinar e a empresa?

    Carla Silveira Moraes

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    1. Obrigada Carla,
      Para responder a tua pergunta, a Vale tem uma relação com o povo há mais de 30 anos fazendo convênios para garantir o passo do trem no território gavião. Só que o convênio com a aldeia Kyikatêjê foi curtado no ano 2015, isso implica que o recurso que o povo recebia como indemnização foi tirado da comunidade. Então a comunidade iniciou tudo um processo de luta, e via mandato judicial conseguiram receber o recurso e iniciar com a Vale outro processo de negociação para atualizar o convênio. Nesse atual processo de negociação, o povo Kyikatêjê mudou sua estrategia, pois incluiu a equipe interdisciplinar da Unifesspa para poder ter um respaldo e, sobretudo, ajudar a analisar a linguagem utilizada pela Vale e descobrir seus estrategias e armadilhas, pois cada tentativa de negociação da Vale, vem com a intenção de fazer que a comunidade aceite futuros impactos e projetos como a duplicação da Estrada Ferro Carajás. Na pesquisa, se leva em consideração as posturas dos representantes da Vale e o trato que eles dão à informação quando fazem a negociação, desde olhar do povo e do equipe.

      Entre a equipe e a empresa não existe uma relação direita, a equipe participa das reuniões com o povo e a Vale, só quando o povo exige sua presença. Não existe interação entre a equipe e a empresa por exemplo, senão que todo passa pela comunidade, é a comunidade que articula a discussão entre essas duas partes em um mesmo cenário.

      Elizabeth Garcia Mantilla

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  2. A linha de ferro Carajás passa por dentro das terras indígenas. É sabido que a indenização que a VALE repassa para os indígenas não repara os danos ao meio ambiente, mas minimiza os impactos sociais desses povos. Esse recurso é importante para dá seguimento a alguns projetos sociais.
    Qual a sua visão frente ao retrocesso aos direitos dos indígenas, o desaparelhamento da FUNAI e ao direito as demarcações das terras no atual governo?

    Ronailde Lima Silva

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    1. Dentro do acompanhamento dos processos da comunidade que tenho vivenciado e desde meu olhar de pesquisadora, a "indemnização" que a Vale faz para o povo tem a figura de um contrato de prestação de serviços. Me explico, o recurso dado pela Vale tornou-se um pagamento que "aparentemente" a Vale pode fazer, mas que não é obrigada a fazer. Isso se entende como um aspecto voluntário por parte da empresa. Na verdade, o recurso nem repara os danos ao meio ambiente, é claro, nem minimiza os impactos sociais, pois crea outros impactos dentro da sua cultura: a dependência econômica, marcação do território em espaços do impacto (EFC, BR 222, Linhas de transmissão da Eletronorte) e espaços do povo. A aldeia Kyikatêjê não está mais sob a tutela da FUNAI, devido à exploração histórica que a FUNAI tem feito sobre eles, segundo os textos de Roberto da Matta e Iara Ferraz, que falam sobre o exploração da castanha e o povo Gavião. Então todo está junto, a Vale, o Estado, a FUNAI para o olhar do povo. É evidente que as comunidades indígenas não tem reconhecidos seus direitos, se eles fossem aceitos pelo Estado e o planejamento econômico, não estariam passando por uma situação assim. No meu olhar, os direitos não são ainda reconhecidos, portanto, jamais foram aplicados, eles continuam nessa luta.
      Enquanto às demarcações das terras, isso tem uma dobre contrapartida, porque a TIMM está marcada, mais isso implica colocar limites e encaixar numa única zona para os povos indígenas viverem. Mas também é um primeiro passo para reconhecer a territorialidade dos povos indígenas, só que mesmo assim, o sistema judicial ainda permite impactos nas terras indígenas reconhecidas. Além que são impactos que acontecem sem consulta previas dos povos (como o caso do povo Gavião); então o discurso que prevalece é o econômico sobre o social.

      Obrigada pela pergunta.

      Elizabeth Garcia Mantilla

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